terça-feira, 28 de outubro de 2014

POESIA


UM POEMA DE REINA MARÍA RODRÍGUEZ

Reina María Rodríguez



VIOLET ISLAND

Eu conheci um homem, um homem singular.
cuidava todos os dias e todas as noites da luz do seu farol,
um farol mediano que não sinalizava muito,
um farol pequeno para embarcações de pequeno porte
e obscuras povoações de pescadores. ali, na sua ilha
ele intercambiava com seu farol as sensações
esperando todos os dias, todas as noites, essa outra luz
que não vigia a perseguição de nenhum objecto,
essa outra luz que não ilumina nada,
outra luz reflexiva, que atravessa, para dentro,
a distância do porto seguro do sítio
e o olho que procura restituir, superficial e transparente,
a ilusão provisória que se eterniza:
essa curva do ser estendida junto ao farol
sem precaução nem limite, para ser ou ter
o que imperfeitamente somos, nada mais
que sonhar o que se sonha e estar onde se está
sobre as quietas águas e apagar isso tudo no quadro
de um dia e ser novo outra vez em direcção  à madrugada
junto ao farol pequeno e perdido de Aspinwoll,
sem sequer imaginar que existe algum desejo
além de desejar a breve luz que cai, anoitecendo,
sobre as quietas águas e os sons já mortos
daquelas vagas que, noutro tempo, foram a sua paixão;
a sua dor, de fruir e sofrer, um refúgio sincero,
como o faroleiro de Aspinwoll, sozinho no seu farol,
eu permaneço adormecida, apesar da intensa luz que cai
e sobressai não obstante o tempo, apesar da chuva
golpeando o espelho dos peixes brancos,
apesar daquela luz espiritual que era a sua alma,
eu permaneci adormecida entre o porto e a luz,
sem compreender: queria, só queria mais tempo
para voltar aprendendo, não sobre a ressaca
    da comiseração
onde os desesperados amarram o seu mastro;
não a fortuna verdadeira de viver sem saber, sem se dar
    conta;
não a luz provisória que se etermiza e finge o que seremos
ou o medo de possuir a realidade opaca, intranscendente.
eu queria a vida só pelo prazer de morrer,
    sobre as quietas águas,
junto aos peixes brancos e contudo estava impaciente
porque sucedera a reedição do meu insconsciente
para que alguém achasse ali o não tocado, a outra voz,
não deste ser intermediário, um corpo para medir
    as fendas
baixas; um corpo para a violação de um eu impraticável:
    eu permaneci adormecida,
inconsequente, na imaginação
de esse outro na distância, suficientemente avançada
para ter luz própria em Aspinwoll, mas também
destroçada, obscurecida, como o faroleiro sobre as quietas
    águas
do que imperfeitamente somos, na mediania
de um farol que não sinalizava muito, através da chuva
    cálida e real do impossível.
sou Fela, não te conheço. este corpo com que virei não é meu
a aparição será outra coisa: como despenhar-se, uma avaria,
um silêncio.
e se perco? ou se ganho? ou se atravesso o fosso vertical?
acerco-me dos animais como únicos sobreviventes
maravilhados com o ócio da luz
e estes pastos vazios que atravesso com horror
e chamando-os, acerco-me, para onde vão, para onde vão
    todos?
procurando onde agarrar o que tive por certo
e sem ilusões do desastre de sermos como únicos
    sobreviventes
do farol na sua vertigem talvez os faça compreender a
    minha inteção
de contar ainda alguma sombra, alguma luz.
não quero domesticar mais ninguém.
que eles penetrem com a sua sabedoria nas minhas vozes
e se acerquem sem ser, sem pedir, sem se dar conta
mas conhecendo, desde o fingido olho avermelhado, outra
    linguagem,
outra profundidade que não assinale o certo, nenhum termo,
nenhuma coragem, somente estar onde estamos
    e alojarmo-nos
como inteligências diferentes na sensação, oferecendo-nos
dor, angústia, alguma chama estável.
e agora diz-me... geme ao ouvido
foi uma cidade com porto.
os nomes dos seus barcos profundos
ancoraram aqui alguma vez.
nomes raros com esmaltes muito fortes
e acesos.
estávamos rodeados de horizontes e de água
porque os portos permitem esquecer e receber
esquecer e voltar. foi uma cidade com porto
donde nunca ninguém mais partiu ou voltou.
uma névoa constante cobre a tela do fundo
ainda azul e humedecida do Inverno
e o descolorido ondear das bandeiras
esburacadas pelas sombras.
se bem que antes fosse um limite
quando saías a vê-lo e correr
agora é só a aparência de um limite
o som das sirenes mortas
que já não soam através de ti
nem se confundem nem te chamam.
mas onde está o porto?
e os barcos?
e o farol?
e os ombros dos marinheiros convidando-te
a outros portos obscuros?

(Do livro Poesia Cubana Contemporânea, Editora Antígona, Lisboa, 2009, tradução de Jorge Melícias)

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