quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

CULTURA - POESIA

Juan Gelman (1930 - 2014) aos 83 anos



UM POEMA DE JUAN GELMAN

VERDADES

cada vez que embaralho recordações dou com essa mulher/
em suas orelhas cresciam flores para não ouvir os ruídos da dor/
de perfil parecia o oceano atlântico às 6 da tarde/
do outro lado era minha tia conversando com seu outono/

de seus olhos belíssimos baixava às vezes um cavalo
que recitava comédias/ a comédia do abandono (colocava quatro violetas na cauda para isso)//
a comédia do encontro (um coelhinho lhe saía do sul)/
a comédia do espírito chuvoso embora pianístico/ porém

o mais formidável era vê-la na comédia do amor/
seu coração suava como um estivador de porto novo carregando e descarregando um barco russo/
ao mesmo tempo seus olhos ficavam brancos feito um esquimó/
sua voz ia subindo e descendo as escadarias do castelo de northumberland/bêbada

como papai e outros exemplares de minha delicada família/
não sei o que faria papai ucraniano daquele jeito na inglaterra/
odiava londres que zumbia à sua volta e não o deixava dormir/
tinha opiniões sobre a rainha britânica/
estava convencido que a coroa inglesa era um aro de sangue com um diamante azul/
acreditava firmemente que a rainha da grã-bretanha tinha a bunda de pedra/
de uma nádega saía robin hood disfarçado de rainha/
e da outra saía robin hood disfarçado de robin hood/

meu pai foi reprovado frequentemente em história por essas crenças/
que herdou de uma avó entendida em robin hood/
a avó de papai era mais bela que todas as rainhas do mundo/
fazia os bosques tremer com um olhar azul de seus olhos castanhos/
de seu olho direito crescia uma estepe onde pastava o cavalinho de pushkin/
autor como se sabe de versos de pushkin/
e quando pushkin perdeu (e ainda voa de vez em quando sobre o céu sul-americano) /o cavalinho

resmungou no olho da avó/
qual poeta ia levar agora às margens do ser?/disse/
para quem comer olho agora?/
“vou começar a voar sobre o céu sul-americano” dizia o cavalinho/

de maneira que a avó o passou ao outro olho tornando-o cisne/
agora navega pelo lago que a avó de papai fez chorando
quando soube da morte de pushkin/
de modo que não sei o que papai faz em northumberland/

estará fazendo o mesmo de sempre/
finge que está a mesa/
mostra a cara/ come/ bebe/ me dá broncas como um pai/
mas ele não está aqui/ deve estar falando com a avó/

está fechando os olhos do poeta russo que chamava pushkin/
está na casa de madeira de moscou de onde irá fugir porque este é o ano de 1905/
e essa revolução fracassou/ e fracassou a pele de papai/ que havia posto
a pele nessa revolução e salvou a pele/

essa revolução envolvia papai com pássaros mudos/
com sua morte entrevista e sempre negada/
com seu peito aberto às garras da fuzilação/
com os tiros que sempre matavam outras partes e não o deixavam morrer como se deve/

e ausência de tiros que não o deixavam viver como se deve/
a única coisa que ele tinha para se defender era uma avó sutil/
papai acordava às 5 da manhã/
ouvia os pássaros que a derrota cegou/
dava a mão a cada companheiro morto ou vivo/
apalpava o estado de seus sonhos/ revisava sua umidade/
subia bêbado as escadas/
em representação do amor que lhe sobrou/ esperou
e calou em pleno almoço/ mais duro
que o meio-dia de fogo do sul/
o meio-dia tinha anjos que sentavam-se em meus olhos/
e fechavam meus olhos e eu via essa mulher/

essa mulher misturava a geografia tanto/
havia estudado numa escola pública/
de modo que em vez de suspirar/ movia
a cama cantando a marcha de san lorenzo/

“febo assoma” cantava com uma espada na voz/ enxugando de si a comédia de ontem/
“já seus raios” cantava tirando a mesa/ pondo os pratos na pia da manhã/
“e a voz do grande chefe” cantava na cozinha/ recolhendo
migalhinhas da conversa amorosa caída na toalha/ ou

apagando de um só golpe a noite/ as consequências da noite/
com sua ternura infantil/ mais sonsa que um banquinho/
quando falava de política era linda como marilyn monroe/
em sua boca a revolução latino-americana parecia um quadro de rousseau/

sempre havia uma selva/ um tigre ou uma tigresa/ uma lua rosada
(não de rosados dedos)/ mistérios vegetais e animais/ e um par de pernas azuis que voavam como ela
quando a seu sorriso perfeito vinham cãibras velhas como sua menina quer dizer/
de quando era pequenina e olhava as paredes do mundo/
e por seu olhar passava um burrinho sob o sol/
e ela desembarcava às 6 da tarde com um mundaréu de outonos/
e assim começava a doçura/

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