sexta-feira, 6 de março de 2015

POESIA – LALO ARIAS

Retrato do poeta quando jovem diretor de arte


LETTERA 22

(UM)

Berenice passou por aqui
levou o livro do Machado
disse que é só um empréstimo.
Ela sempre me trata meio aos trancos
isso é bem estranho
deve ser um incômodo
uma desarrumação interior
alguma coisa assim
bem dela.
Amanhã faço 16 anos
meus pais não se falam
faz 10
e eu aqui
feito besta
espantando a fumaça
pelo vão da janela
olhando o cachorro sentado no quintal
e o gato dormindo.
Berenice disse que eu devia lavar os cabelos
e que eles estão horríveis
ela sempre diz coisas assim
parece que ela me ama
e me odeia
ela mal fez 14
é uma peste
sonha com um país só de índios
gente pescando no rio
na base do arco e flecha
não sei fazer isso
eu disse
então
ela me chamou de idiota
virou as costas e sumiu.
Silvia
já é bem diferente
ela faz ballet
e tem uma voz
meio rouca
que arrepia minha nuca
quando conversamos
jogados na escada
na entrada da casa dela
as coisas são desse jeito entre nós
um pouco largadas
ela ri muito das besteiras que eu falo
e eu fico bem quieto
quando ela fala.
Ela namora um cara que mora no Rio
eu namoro
uma outra menina que namora um outro cara
que também mora no Rio.
A gente se ama
muito
a Silvia e eu.
Têm coisas na vida
que eu nunquinha
vou ser capaz
de entender



(DOIS)

Eu sempre confundo essa coisa
de outono inverno
de primavera verão
nunca sei quando é uma coisa
quando é outra.
Ontem de noite
por exemplo
tava muito frio
em pleno abril.
Fomos lá pro fundo da casa do Chicão
no meio do barranco.
Aquilo tudo de sempre
fogueira
vinho vagabundo
e os cigarros.
O Chicão no violão e na voz.
Meu Deus
aquilo era o céu.
Aí eu te pergunto:
quem chega?
O Hiro, a Taekinho, a Mirna
a Lucy e a Gê.
Meu Deus
aquilo era o céu
com frio e tudo.
Então a Lucy tocou e cantou uma música
do Georges Moustaki.
Só não chorei porque as meninas
iam rir de mim, eu acho.
Depois
bem mais tarde
eu não conseguia distinguir o que era estrela
e o que era fagulha fugindo
da fogueira.
O Hiro me disse
vem
cara
que eu te levo pra casa.



 (TRÊS)

o fumo
do meu pai
só tem na tabacaria
do largo dos Pinheiros
ele passa em frente
e não para
ele chega em casa
e não pede
ele manda
pega a bicicleta
traz dois maços
douradinho extra
é o nome da coisa
que fede
eu quase me mordo
são dez quarteirões até lá
ligeiro ligeiro
largo minha fantasia
no mezzanino da garagem
onde eu sou zorro
no cavalo de pau
onde eu sou el cid
cavalgando morto
na frente da cavalaria
minha batalha é essa
de onde saio
todas as tardes
com a certeza
que sou o único
que sobreviveu



(QUATRO)

eu ficava só olhando pra trás
o povo todo na frente
feito fila indiana
o Marinho tinha desaparecido
lá pra trás
aí eu voltei
ele tava caído no meio da relva
com o vidrinho de lança-perfume
do lado
eu falei levanta, meu
a gente vai se perder
ele falou muito devagar
tô olhando pro céu
eu falei
não tem céu nenhum
tamo no meio da mata fechada
ele disse
o céu tá dentro da minha cabeça
ele ficou de pé e seguimos
só o velho Baeder mesmo
pra juntar toda aquela molecada
e trazer pro rancho
no meio do vale da Ribeira
na beirinha do rio Assungui
viemos em três carros
o jipe da Lucy
o fusca do Hiro
a perua do velho Baeder
que ficaram no meio do barro
lá encostados na estrada
acho que éramos uns treze
ou quatorze
quando chegamos
o Marinho foi desmaiar na rede
todo mundo pelado tomando banho de rio
menos eu e o velho Baeder
descascando alho cebola batata cenoura
acendendo o fogão
lenha não faltava
eu sempre dividido
não sabia se ia ou voltava
como na trilha
não sabia se me jogava no rio
junto da meninada
ou se ouvia as estórias do velho
cada coisa que ele dizia
do mundo
puxa vida
eu nunca vou conseguir
esquecer daquele homem

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