terça-feira, 7 de abril de 2015

CRÔNICA – MARCIA DENSER


              WORKING IN PROGRESS
Ainda estou me decidindo se morro ou não de cirrose, a turma aqui em casa não ia achar a menor graça, então penso no que li no Reinaldo Morais que diz se tivesse de parar de beber e cheirar e fazer jogging logo cedo todo dia, a vida não teria a menor sentido (ou algo assim): tentei encontrar a frase exata naquele romance dele de duzentas mil páginas, mas uma frase é a coisa mais perdível do mundo, leu, gostou, valeu, mas pra retornar a ela, crau, adio; mas tenho absoluta certeza que ele disse isso muito melhor do que eu agora, enfim com mais ou menos o mesmo significado/e quem se importa com significados, porra?/quem está falando em significados, porra? /eu queria a frase exata, precisava da frase exata/ aliás estou sempre precisando de alguma coisa urgentemente, feito o Nöll naquele conto do caralho que absolutamente você não leu, claro, então é bobagem ficar dando esse tipo de raporte, ficar aludindo a algo que ninguém lembra ou sabe ou leu, é uma merda, o mundo vai se tornando um bocado restrito assim, sabia, cara? E não adianta nada se emputecer, não adianta mesmo.
Sem contar que estou ficando literariamente afásica, troco todas as letras quando escrevo, deve ser efeito ANTECIPADO da cirrose da qual ainda não me decidi se morro ou não, até porque segundo minha hepatologista, uma baiana maravilhosamente arretada, tenho essa hepatite C há uns 20 anos, é mole? Peguei onde? Tem que ser contato tipo sangue contaminado, mas pelo que eu saiba nunca dei o cu, mesmo assim, just in case, fiz exame e não tenho Aids, então pelo sexo não foi. Nunca tomei transfusões de sangue, jamais, restando, portanto meus malditos tratamentos dentários, uma sangueira do caralho, prótese cai não cai, arranca, não arranca, balança e cai e sangra, sangra mais. Deve ter sido por aí. FOI AÍ, porra.
Mas que interessa agora onde e como, porra, se mediante os fatos preciso me decidir se morro ou não de cirrose hepática; lendo a biópsia cientifico-me que em vários setores estou com necroses de terceiro grau, um record e tanto, baby, sem contar que sou alcoólatra há uns 30 anos, daí pra mais. E meus dentes SEMPRE foram péssimos desde que me conheço por gente. Então a gente reúne as duas coisas e crau: um Sherlock rápido. Pena que não seja policial nem ficção. Pra ler nas férias.
E achas que sinto Mágoa ou Remorso ou Arrependimento ou alguma merda no gênero? De forma alguma, o fato é que PRECISO CONTINUAR BEBENDO, só assim a vida faz algum sentido, ok, ok., não sou nenhum cônsul britânico em Tiahuanac/México tipo Under The Volcano (aliás um puta filme, o último do John Huston), desses que, quando em cana, bebiam mescal no penico, íntimo de ver abutres em lavatórios: Malcolm Lowry fode com qualquer aspirante a dipsomaníaco, podem apostar. E imaginar que foi o Osman Lins, que pela cara devia ser abstêmio, me deu esse livro “pela qualidade literária”, através da mulher dele, Julieta – Under theVolcano foi uma espécie de pito literário – para mim parar de ser drogada e alcoólatra e de encher o saco da patota literária tão chic que frequentávamos e à qual eu só pertencia devido a meu talento in-so-fis-má-vel.
Ok, ok, você fica mudando de assunto e não decide se morre ou cuida da porra dessa cirrose a caminho – ou será da morte a caminho? Engraçado, ficou fashion dizer que as coisas “estão a caminho” – in coming! – outro americanismo de merda, será que brasileiro não sabe pensar na própria língua? Supondo que ele pense, claro. Quanto a você, pense logo e decida se morre ou não de cirrose, é simples, uma elementar operação decisória. Bom. Digamos que, provisoriamente, estarei me decidindo nos próximos seis meses (minha hepatologista arretada vaticina que devo ter essa merda há 20 anos, seis meses a mais ou a menos não farão grande diferença). E me libera profilaticamente uma garrafa de vinho a cada 24 horas. Nada mal. Protelemos pois.
Ah, Márcia, você adora acostamentos quando o automóvel estaria pronto para a viagem. Um cara, meu primeiro psicanalista, me disse isso: você tem dinheiro no banco e não saca. Mas, profeticamente, respondi a ele num conto que escrevi aos 34 anos (e que só AGORA faz sentido): se não estivesse ferida, estaria voando. Então, eu te desmascaro, espertinho, não tem mais graça. Definitivamente não. Por isso vou continuar me decidindo, etc. E vamos considerar isto uma obra em progresso, fui clara?

MÁRCIA DENSER nasceu em São Paulo e publicou seu primeiro livro, Tango Fantasma, aos 23 anos. Aos 24 anos iniciou seus trabalhos jornalísticos na revista "Nova", da Editora Abril, onde, por dois anos, assinou a coluna "Nova Livros". Formou-se em Comunicações e Artes pelo Mackenzie. Jornalista, publicitária e editora, trabalhou na Salles, Folha, Interview, Around, Vogue, A-Z, onde foi redatora de criação, repórter especial, cronista e colunista de livros.
Coordenadora de Oficinas Literárias desde 1990, tem obras publicadas na Alemanha, Suíça, Holanda, Estados Unidos e Rússia. Participou do Lateinamerikas'90, programa de intercâmbio cultural Brasil/Alemanha, ao lado de Marcos Rey, Oswaldo França Jr., Nelson Pereira dos Santos e Suzana Amaral, dando conferências em oito cidades da Europa. Ficou conhecida como a escritora favorita de Paulo Francis que dela disse: "Há no Brasil uma escritora que sabe escrever. Seu nome? Márcia Denser. Tem uma linguagem límpida, sem retoques, bem diversa desse pseudo-romantismo retórico que caracteriza boa parte da nossa ficção. Denser situa-se entre os raros criadores de linguagem, aqueles que têm algo de muito novo a dizer. Quanto aos outros, resta-lhes a rabeira da História.”
Muitos a intitulam de musa dark da literatura brasileira.

               http://www.releituras.com/mdenser_menu.asp

ILUSTRAÇÃO: Janio Santos, do Suplemento PERNAMBUCO

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