quinta-feira, 13 de novembro de 2014

CULTURA – MEMÓRIA

Flávio Rangel


ÚLTIMA CONVERSA COM FLÁVIO

Por  AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA

24.02.1988
Acabou de me ligar Flávio Rangel.Ontem tentei falar três vezes com ele, tão logo soube pelo Zuenir Ventura que o câncer de pulmão tinha voltado e, por isso, Flávio não estava escrevendo mais suas crônicas no JB.
Liguei, mas só pude falar com a empregada. Ariclê não estava e Flávio descansava, não podendo atender. Liguei mais tarde e aí consegui falar com Ariclê.
É difícil. É muito difícil. O que é que a gente vai dizer numa ocasião dessas? Sei que outros pensam: não vou incomodar, pois fazer um doente terminal falar sobre sua doença é um suplício para ambos. Penso nisso, mas também penso o contrário. Que o outro do lado de lá, está numa solidão danada, porque é normal que as pessoas se afastem consumidas em suas ocupações e por medo de se envolverem. Além do mais, devemos dar ao outro o direito de dizer se quer ou não conversar, se quer ou não receber visitas.
Na conversa com Ariclê, ela me relata que Flávio se sente melhor pelas manhãs. De tarde descansa. Disse-lhe então que transmitisse a ele o meu carinho e que se achasse que não atrapalhava, aparecia por lá.
Pois ele me ligou agora. Sua voz delicada e sempre firme. E foi direto ao assunto. Não ficou rodeando, fingindo, tapeando. Completamente diferente de um conhecido que ao receber telefonema de um amigo, em idêntica situação, não só desconversou como ainda disse que estava ótimo.
Flávio, não. Foi diretamente ao assunto dizendo que queria ter um fim digno, um resto de vida útil. Não queria ser problemático nem dependente. Contou-me que havia começado um tratamento quimioterápico, mas que havia solicitado ao médico que ficasse atento, pois, repetia enfático, queria ficar lúcido e firme.
Nunca vi uma conversa tão límpida e madura em situação tão difícil. Aliás, a situação perdeu seu caráter constrangedor e, em pouco tempo, conversávamos sobre a sua morte com uma intimidade e uma clareza, como se ele não fosse mais morrer ou como se a morte fosse um assunto sobre o qual se pode conversar desassombradamente.
Falava-me ele do caso de Nara Leão. Bem que os jornais de alguma maneira filtraram alguma coisa a respeito. Ela voltou radiosamente à vida normal. O Flávio está tentando o mesmo médico, lá em Belo Horizonte, mas sente que ele não lhe deu muitas esperanças. Falei então do Darcy Ribeiro: retirou um pulmão com câncer , e como o próprio Darcy me disse outro dia, o pulmão restante começou a crescer… Só o Darcy! Aí já havia quase bom humor na conversa. E Flávio diz que esse é o caso semelhante ao do Chacrinha, e me fez uma descrição detalhada.
Flávio não se ilude. É contra essa coisa da medicina ocidental de ficar prolongando a vida com sofrimentos inúteis. Lembrou-me que conversou sobre isso com o Darcy no enterro do Henfil. No enterro do Henfil, o vi (enquanto conversava com o Ziraldo) e o Ziraldo ali me dizia que estava impressionado com o Flávio: “Cara macho tá ali!”, dizia. Naquela época o câncer do Flávio havia sido controlado ou regredido.
E a conversa correndo, surgiu o nome de Maria Julieta Drummond: ela teve três ou quatro anos mais do que os três ou quatro meses que a medicina lhe deu. Flávio repete: não quer sobrevida, quer vida mesmo, ou nada. E vai dizendo que parou de fazer as crônicas no JB porque estava com dificuldades para se concentrar. Era um esforço danado. E dizia: “Você sabe, nós fazemos uma crônica diferente dos maravilhosos cronistas dos anos 50. É voltada para o cotidiano e participação. E a leitura dos jornais me cansa. De manhã ainda consigo ler um pouco um jornal, mas à tarde durmo. Meu dia encolheu”.
A conversa terminou mais ou menos por aí.
O que dizer mais? O amigo vai morrer. Está morrendo com uma dignidade rara. Aliás, lembro de que ele disse outra coisa relativa a essa tragédia das enchentes de fevereiro: “Já que começamos a falar dessas enchentes como dizia Shakespeare, até a queda de um pardal é regulada pela Providência. Se vai cair hoje ou amanhã, é outra coisa. Tudo tem seu fim. Que seja digno”.

25.10.1988
De manhã telefona-me Kay, esposa de Moacyr Felix: “Morreu Flávio Rangel”.

26.03.2006
Ariclê Perez suicidou-se jogando-se da janela de seu apartamento (10° andar) no bairro Higienópolis, em São Paulo. Seu último trabalho foi representar a mãe de Juscelino na minissérie JK, da Rede Globo.

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA é mineiro de Belo Horizonte (1937), jornalista, professor universitário, ex-diretor da Biblioteca Nacional, é considerado unanimemente um dos mais importantes poetas brasileiros da atualidade. Publicou dezenas de livros de ensaios, crônicas e poesias, entre os quais: Poesia sobre poesia (Imago, 1975), Que país é este? (Rocco, 1984), Paródia, paráfrase & cia (Ática, 1985), O canibalismo amoroso (Rocco, 1990), O lado esquerdo do meu peito (Rocco, 1992), A grande fala e A catedral de Colônia (Rocco, 1998). Recebeu algumas das principais comendas brasileiras como Ordem Rio Branco, Medalha Tirandentes, Medalha da Inconfidência, Medalha Santos Dummont.


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