Flávio Rangel |
ÚLTIMA
CONVERSA COM FLÁVIO
Por AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
24.02.1988
Acabou de me ligar Flávio Rangel.Ontem tentei falar três vezes com ele, tão logo soube pelo Zuenir Ventura que o câncer de pulmão tinha voltado e, por isso, Flávio não estava escrevendo mais suas crônicas no JB.
Acabou de me ligar Flávio Rangel.Ontem tentei falar três vezes com ele, tão logo soube pelo Zuenir Ventura que o câncer de pulmão tinha voltado e, por isso, Flávio não estava escrevendo mais suas crônicas no JB.
Liguei, mas só pude falar com a
empregada. Ariclê
não estava e Flávio descansava, não podendo atender. Liguei
mais tarde e aí consegui falar com Ariclê.
É difícil. É muito difícil. O
que é que a gente vai dizer numa ocasião dessas? Sei que outros pensam: não vou
incomodar, pois fazer um doente terminal falar sobre sua doença é um suplício
para ambos. Penso nisso, mas também penso o contrário. Que o outro do lado de
lá, está numa solidão danada, porque é normal que as pessoas se afastem
consumidas em suas ocupações e por medo de se envolverem. Além do mais, devemos
dar ao outro o direito de dizer se quer ou não conversar, se quer ou não
receber visitas.
Na conversa com Ariclê, ela me
relata que Flávio se sente melhor pelas manhãs. De tarde descansa. Disse-lhe
então que transmitisse a ele o meu carinho e que se achasse que não
atrapalhava, aparecia por lá.
Pois ele me ligou agora. Sua
voz delicada e sempre firme. E foi direto ao assunto. Não ficou rodeando,
fingindo, tapeando. Completamente diferente de um conhecido que ao receber
telefonema de um amigo, em idêntica situação, não só desconversou como ainda
disse que estava ótimo.
Flávio, não. Foi diretamente ao
assunto dizendo que queria ter um fim digno, um resto de vida útil. Não queria
ser problemático nem dependente. Contou-me que havia começado um tratamento
quimioterápico, mas que havia solicitado ao médico que ficasse atento, pois,
repetia enfático, queria ficar lúcido e firme.
Nunca vi uma conversa tão
límpida e madura em situação tão difícil. Aliás, a situação perdeu seu caráter
constrangedor e, em pouco tempo, conversávamos sobre a sua morte com uma
intimidade e uma clareza, como se ele não fosse mais morrer ou como se a morte
fosse um assunto sobre o qual se pode conversar desassombradamente.
Falava-me ele do caso de Nara Leão. Bem
que os jornais de alguma maneira filtraram alguma coisa a respeito. Ela voltou
radiosamente à vida normal. O Flávio está tentando o mesmo médico, lá em Belo
Horizonte, mas sente que ele não lhe deu muitas esperanças. Falei então do Darcy Ribeiro:
retirou um pulmão com câncer , e como o próprio Darcy me disse outro dia, o
pulmão restante começou a crescer… Só o Darcy! Aí já havia quase bom humor na
conversa. E Flávio diz que esse é o caso semelhante ao do Chacrinha, e me
fez uma descrição detalhada.
Flávio não se ilude. É contra
essa coisa da medicina ocidental de ficar prolongando a vida com sofrimentos
inúteis. Lembrou-me que conversou sobre isso com o Darcy no enterro do Henfil. No
enterro do Henfil, o vi (enquanto conversava com o Ziraldo) e o Ziraldo ali me
dizia que estava impressionado com o Flávio: “Cara macho tá ali!”, dizia.
Naquela época o câncer do Flávio havia sido controlado ou regredido.
E a conversa correndo, surgiu o
nome de Maria
Julieta Drummond: ela teve três ou quatro anos mais do que os
três ou quatro meses que a medicina lhe deu. Flávio repete: não quer sobrevida,
quer vida mesmo, ou nada. E vai dizendo que parou de fazer as crônicas no JB porque estava
com dificuldades para se concentrar. Era um esforço danado. E dizia: “Você
sabe, nós fazemos uma crônica diferente dos maravilhosos cronistas dos anos 50.
É voltada para o cotidiano e participação. E a leitura dos jornais me cansa. De
manhã ainda consigo ler um pouco um jornal, mas à tarde durmo. Meu dia
encolheu”.
A conversa terminou mais ou
menos por aí.
O que dizer mais? O amigo vai
morrer. Está morrendo com uma dignidade rara. Aliás, lembro de que ele disse
outra coisa relativa a essa tragédia das enchentes de fevereiro: “Já que
começamos a falar dessas enchentes como dizia Shakespeare, até a queda de um pardal
é regulada pela Providência. Se vai cair hoje ou amanhã, é outra coisa. Tudo
tem seu fim. Que seja digno”.
25.10.1988
De manhã telefona-me Kay, esposa de Moacyr Felix: “Morreu Flávio Rangel”.
De manhã telefona-me Kay, esposa de Moacyr Felix: “Morreu Flávio Rangel”.
Ariclê Perez suicidou-se jogando-se da janela de seu apartamento (10° andar) no bairro Higienópolis, em São Paulo. Seu último trabalho foi representar a mãe de Juscelino na minissérie JK, da Rede Globo.
AFFONSO
ROMANO DE SANT’ANNA
é mineiro de Belo Horizonte (1937), jornalista, professor universitário,
ex-diretor da Biblioteca Nacional, é considerado unanimemente um dos mais
importantes poetas brasileiros da atualidade. Publicou dezenas de livros de
ensaios, crônicas e poesias, entre os quais: Poesia sobre poesia (Imago,
1975), Que país é
este? (Rocco, 1984), Paródia,
paráfrase & cia (Ática, 1985), O canibalismo amoroso (Rocco, 1990), O lado esquerdo do meu peito
(Rocco, 1992), A
grande fala e A
catedral de Colônia (Rocco, 1998). Recebeu algumas das principais
comendas brasileiras como Ordem Rio Branco, Medalha Tirandentes, Medalha da
Inconfidência, Medalha Santos Dummont.
Mais sobre Flávio Rangel: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa359367/flavio-rangel
Retirado do site: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/ultima-conversa-com-flavio/
Retirado do site: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/ultima-conversa-com-flavio/
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